31 de março de 2014

"um massacre verbal"

"É um massacre verbal com requintes de crueldade": assim eagleton qualifica a célebre e estapafúrdia descrição do célebre e estapafúrdio boné de charles bovary, com que flaubert inicia seu romance.




29 de março de 2014

os diabinhos de estimação

continuando com macbeth, ato I, cena I, satanás costumava enviar a seus seguidores terrenos uns diabinhos para ficar com eles. geralmente assumiam alguma forma animal: gatos, corvos, sapos...


assim, quando a primeira bruxa diz: I come, Graymalkin, ela está respondendo ao chamado do espírito encarnado em seu gato cinzento. penso em usar: Estou indo, Gatinho.



já para "Paddock calls", que diz a segunda bruxa, Sapo está chamando fica meio comprido. penso em usar: O Sapo chama.

a terceira bruxa não nomeia seu diabinho, mas só responde a ele: Anon, "rápido", "depressa", no sentido de que já está indo, ligeirinho: Já vou!

sobre essa cena, comentada por eagleton, veja também aqui e aqui.

28 de março de 2014

da série "quem disse que é bolinho" II


imagem, aqui


retomando o ato I, cena I de macbeth, que comentei antes aqui, os pontos centrais que eagleton destaca, são:
1. que, em treze versos, não menos de três estão no interrogativo, dois deles logo de saída
2. que são três bruxas, porém compõem uma espécie de unidade, como medonha paródia da santíssima trindade
3. que chuva, raio e trovão são três fenômenos, mas que eles também geralmente comparecem como uma unidade num temporal
4. que hurly-burly também encerra um jogo de diferença e igualdade, refletindo a diferença/igualdade da trindade das bruxas
5. que perder e ganhar igualmente encerra um jogo de diferença e igualdade, tanto por relação de complementaridade (um exército ganha enquanto outro perde) quanto por oposição interna (a vitória em guerra é também uma derrota), jogo este estabelecido pelo conectivo "e"
6. que fair/ foul aparecem em definições invertidas e polarizadas
7. e por aí vai.

dunque, a tradução dos versos terá de conter necessariamente:
1. todas as interrogativas, obviamente (à diferença, p.ex., das soluções de bandeira, nunes, heliodora, viégas-faria)
2. as três bruxas, claro (millôr, em sua adaptação, dá quatro [?])
3. os três elementos, claro, também (à diferença, p.ex., das soluções de bandeira e heliodora)
4. não consegui; estou pensando em usar "lufa-lufa" e manter hurly-burly para os comentários do autor
5. os dois termos opostos, também obviamente (à diferença, p.ex., das soluções de nunes)
6. os dois termos da definição, ainda obviamente (à diferença, p.ex., das soluções de bandeira e nunes)
7. e o que mais for preciso.

aqui, quem dá a toada para a tradução é o autor com seus comentários. como a ênfase de eagleton é muito mais sobre o sentido e as diversas conotações dos versos e da cena do que sobre a métrica e as rimas, sinto-me até certo ponto justificada em não me manter demasiado presa na camisa-de-força desses nem sempre muito rigorosos pentâmetros trocaicos ou como se chame. de qualquer modo, tentarei manter sempre que possível a preferência por monossílabos, dissílabos e, no máximo, trissílabos. para os dois grandiosos versos finais, tentarei uma assonância em u, à falta de conseguir qualquer coisa remotamente similar às belíssimas consonâncias em f.

vamos ver o que sai.

veja-se outro problema aqui.

27 de março de 2014

sensação do dia


depois de umas 25 páginas do segundo capítulo, a sensação que tenho é de que eagleton é muito mais interessante comentando inícios e aberturas de obras (capítulo I) do que tentando falar de personagens (capítulo II).

a única coisa interessante até agora, neste capítulo, nada tem a ver com personagens. é uma rapidíssima menção al volo ao que ele chama de "anti-intelectualismo" do eliot.

tomara que melhore. por ora, só está conseguindo rodear, rodear o tema, operando basicamente por exclusões e caracterizações que chegam a ser quase insultuosas à inteligência do mais medíocre leitor. por exemplo:
A Grande Muralha da China é semelhante ao conceito de tristeza, no sentido de que nenhum dos dois consegue descascar uma banana.
ou:
Não há como ser virtuoso sozinho e por conta própria. A virtude não é como tricotar uma meia ou mordiscar uma cenoura. 

ninguém merece, imagino que nem os aluninhos dele.

coisas que acontecem



nada demais; simplesmente acontece: o livro passa por um processo editorial completo e, mesmo assim, sai que "O romancista setecentista Henry Fielding adora seus personagens de boa índole, como Joseph Andrews e o pároco Adams em Pamela".

aí boto observação em destaque amarelinho para a editora: "[??, deve ser em Aventuras de Joseph Andrews, não Pamela]"

isso para dizer que, sim, acredito que tradutor tem de corrigir ou assinalar, sim, algum eventual lapso ou gralha do original, quando o vê.


26 de março de 2014

a difícil do dia



eagleton está dizendo que as qualidades de caráter, em termos gerais, são comuns a todos. o que varia são as configurações, as combinações diversas dessas qualidades nos indivíduos. então afirma:
But the qualities themselves are common currency. It would make no more sense to claim that only I could be insanely jealous than it would to call the coin in my pocket a dime even though nobody else did. Chaucer and Pope would no doubt have taken this for granted, though Oscar Wilde and Allen Ginsberg would problably have not.

mesmo que eu consiga pôr isso em português decente, temo que as referências ao dime na analogia com o ciúme - e até onde as entendi - fiquem meio obscuras: por que contrapor chaucer e pope a wilde e ginsberg, por exemplo? ou os séculos 14 e 17/18 aos séculos  19 e 20? por que ingleses contrapostos a irlandeses e americanos? saberão os leitores que o dime é a moeda americana de dez cents (i.é, já em sistema decimal)? e que só foi cunhada pela primeira vez no finalzinho do século 18 (1796)? que chaucer e pope, além de ingleses, são portanto anteriores à criação do dime? que também existe um dime irlandês (daí a referência ao wilde)? afora que traduzir dime como? e mesmo que eu adaptasse a alguma distinção entre moeda portuguesa e brasileira, por exemplo, ia pôr quem? camões e cláudio willer? deixar dime e então recorrer à tal da nota de pé de página?

o pior é que tenho certeza de que eagleton só se saiu com essa comparação entre ciúme e dime porque na frase anterior tinha usado metaforicamente a expressão "common currency" para falar das qualidades e traços de personalidade, e aí seguiu no embalo. ou seja, muita dor de cabeça pra pouca coisa, é a sensação que tenho na hora de tentar entender e traduzir essa passagem.

as boazinhas e chatinhas


"ser agradável é para quem pode": conclusão de terry eagleton, agora falando de personagens femininas insípidas e tediosas, no caso jane eyre (jane eyre, de charlotte brontë) e fanny price (mansfield park, de jane austen).

segundo ele, o fato de serem tão virtuosinhas e sem graça (inclusive pamela e clarissa, de richardson) embute, na verdade, uma crítica à sociedade que obriga as jovens solteiras, órfãs, despossuídas etc. a serem boazinhas e mortalmente enfadonhas até como uma espécie de estratégia, de conduta maquinadora.





25 de março de 2014

traduzindo e aprendendo




terminando o primeiro capítulo do livro, "inícios", eagleton, depois de tratar dos seis poemas antes citados, passa para:
  • esperando godot, de beckett 
  • o terceiro policial, de flann o'brien
  • poderes terrenos, de anthony burgess
  • 1984, de george orwell

no caso de 1984, eagleton apresenta o parágrafo inicial, que começa com a seguinte frase:
It was a bright day in April, and the clocks were striking thirteen.
ele comenta que "a primeira frase ganha efeito ao inserir cuidadosamente o número 'treze' numa descrição que, afora isso, nada teria de notável, assim indicando que a cena se passa em alguma civilização desconhecida ou no futuro". 

procurei o que havia de tão extraordinário no uso de thirteen. claro que a gente sabe que os ponteiros dos relógios marcam de 1 a 12 (exceto alguns modelos militares) e que, em inglês, diferencia-se o horário com o uso do a.m. e do p.m. (tal como dizemos "uma da manhã", "uma da tarde", embora, claro, tenhamos "treze horas"). mas não sabia da expressão "a décima-terceira batida do relógio", e estou com vontade de fazer uma nota de pé de página, mais ou menos assim:

A questão é que os relógios, de modo geral, não marcam as treze. O sistema horário analógico e mesmo digital utiliza o ciclo de doze horas, e os mecanismos de relógio, depois de marcar as doze, retomam o ciclo a partir da zero hora. Em inglês, distingue-se o horário pelo uso de a.m. (ante meridian, “antes do meio-dia”) e p.m. (post meridian, “depois do meio-dia”). Daí a estranheza apontada por Eagleton. Aliás, e por extensão, a expressão the thirteenth stroke of the clock designa, em matéria judicial, uma declaração visivelmente falsa de uma das partes, acarretando o descrédito de todas as suas declarações anteriores – com isso, Orwell também sugere que, no romance, todas as declarações do Estado devem ser postas em dúvida, pela perda de credibilidade indicada com a menção, já desde o início, à décima-terceira batida dos relógios da cidade.

24 de março de 2014

da série "como é legal traduzir!"

desnecessário dizer que as aulas do eagleton estão sendo deliciosamente instrutivas. inícios tratados (em maior ou menor extensão) até agora:

e.m. forster - a passage to india
shakespeare - macbeth
bíblia - o livro do gênesis
bíblia - evangelho segundo são joão
jane austen - orgulho e preconceito
geoffrey chaucer - contos da cantuária
herman melville - moby dick


agora vamos ao início de seis poemas:

john keats - to autumn
philip larkin - the trees
philip larkin - the whitsun weddings
emily dickinson - my life closed twice
robert lowell - the quaker graveyard in nantucket
john milton - lycidas


e, antes de todos eles, passáramos pelo epílogo de a tempestade, de shakespeare.
o mais icônico próspero, john gielgud em prospero's books, de peter greenway (1991):





segundo federico, a imagem acima é referência direta à imagem de são jerônimo em seu estúdio, de antonello da messina. achei ótima a sacação; não duvido!


nivelamentos




eu me pergunto por que carlos alberto nunes e manuel bandeira (e millôr, que em sua adaptação utiliza a tradução de bandeira) terão eliminado o próprio credo satânico das bruxas na cena inicial de macbeth:

c.a. nunes: São iguais o belo e o feio.

m. bandeira: O Bem, o Mal,/ - É tudo igual.

fair is foul, and foul is fair - esta é a inversão da coisa, a profanação satânica, o demoníaco é o bem, o belo etc., e o divino é o mal, o feio etc. - não são iguais; as bruxas estão entoando seu cântico, invertendo (para elas, desinvertendo) as definições correntes, e não igualando os opostos. 


mas tudo é bem mais complicado que isso, claro - adiante, elas vão se referir a si mesmas como the weird sisters (cena 3) e macbeth vai tratá-las como the three weird sisters - em inglês antigo, weird (wyrd) significa "fado", e aí temos as três figuras inicialmente apresentadas como adoradoras de satã como as três moiras gregas ou as três parcas romanas da mitologia clássica, que fiam, tecem e cortam o fio da vida.


até reconheço que o verso da primeira cena, tomado em si e isolado do conjunto, pode sugerir uma indistinção e mesmo uma identidade entre foul e fair, gerando uma ambivalência, que é retomada quando as bruxas forem tratadas como parcas. 


posso ser meio impaciente, mas que essa prenhez semântica e simbólica desapareça em algumas traduções apenas me confirma no tremendo preconceito que tenho contra traduções demasiado presas à rima e à métrica, que quase inevitavelmente acabam mutilando o sentido. 



veja-se também aqui.


23 de março de 2014

da série "quem disse que é bolinho" I


eagleton, na primeira seção do livro, está tratando de vários começos de obras. o primeiro deles foi o parágrafo inicial de a passage to india, que comentei rapidamente aqui. depois de discorrer sobre ele ao longo de umas sete páginas, eagleton passa agora para o começo de macbeth.


macbeth, na direção de orson welles (1948)


First Witch When shall we three meet again?
                        In thunder, lightning, or in rain?
Second Witch When the hurly-burly's done,
                        When the battle's lost and won.
Third Witch That will be ere the set of sun.
First Witch Where the place?
Second Witch Upon the heath.
Third Witch There to meet with Macbeth.
First Witch I come, graymalkin!
Second Witch Paddock calls.
Third Witch Anon!
ALL Fair is foul, and foul is fair:
                       Hover through the fog and filthy air.

aí só posso dar risada, não? nessas horas nem as traduções a que tive acesso são de grande ajuda. a do millôr é uma adaptação, e bem distante; a da beatriz viégas-faria é em prosa e bastante estendida; a de cunha medeiros também é em prosa (feita a partir do espanhol); a da bárbara heliodora, em versos, é um pouco enxugada demais; e eis, por exemplo, a de carlos alberto nunes:

Primeira bruxa - Quando estaremos à mão
                          Com chuva, raio e trovão?
Segunda bruxa - Depois de calma a baralha
                          E vencida esta batalha.
Terceira bruxa - Hoje mesmo, então, sem falha.
Primeira bruxa - Onde?
Segunda bruxa - Da charneca ao pé.
Terceira bruxa - Para encontrarmos Macbeth
Primeira bruxa - Graymalkin, não faltarei.
Segunda bruxa - Paddock chama.
Terceira bruxa - Depressa!
Todas - São iguais o belo e o feio;
             Andemos da névoa em meio.

fiquei impressionada com uma coisa: justamente os aspectos mais peculiares que eagleton vai comentar estão ausentes, no todo ou em parte, de nossas traduções brasileiras, todas elas, aliás, grandemente meritórias. um caso a pensar, e é um tema ao qual muito provavelmente terei de voltar.

bom, mas diante disso fazer o quê? vou ter de ir, como dizem, com a cara e com a coragem - se assim não fosse, que graça teria, afinal? mas que dei risada do enrosco, dei.

atualização: agradeço a márcia paredes nunes, que gentilmente me remeteu à tradução de manuel bandeira, muito interessante, aqui.

a continuação, "da série 'quem disse que é bolinho' II", está aqui.


22 de março de 2014

aluninha esforçada




quanto à primeira aula de terry eagleton, aqui, talvez eu tente:

Afora as Cavernas Marabar
E a mais de trinta quilômetros
A cidade de Chandrapore
Nada tem de especial.

de todo modo, vai ficar marcadinha, para ver depois. acho bem importante esse "e" - tipo "e olhe lá, por muito favor", quer dizer, a gente até leva elas em conta, embora fiquem bem longinho da cidade, um qualificativo, quase uma ressalva, um "aliás" que só não uso porque... não sei bem por quê.

se mais que a precisão da distância eu preferir enfatizar o "olhe lá" (conotação restritiva) do "and" na interpolação (entre travessões, na prosa corrida), e ao mesmo tempo quiser manter os aspectos frisados pelo eagleton, também podia ser:

Tirando as Cavernas Marabar
Aliás a uns trinta quilômetros
A cidade de Chandrapore
Nada tem de especial.

ou, aproveitando uma sugestão do leandro durazzo para a interpolada:

Tirando as Cavernas Marabar
Uns trinta quilômetros além
A cidade de Chandrapore
Nada tem de especial.


atualização - ficou: 
Tirando as Cavernas Marabar
Uns trinta quilômetros além
A cidade de Chandrapore
Nada mostra de especial.


primeira aula

pois é, terry eagleton quer nos ensinar a ler literatura. ótimo. e começa pelo começo: pelos começos de algumas obras. ele dá como primeiro exemplo o parágrafo inicial de a passage to india, de forster, e passa a discorrer sobre vários aspectos da construção. mais adiante, volta e se detém na primeira frase:
Except for the Marabar Caves - and they are twenty miles off - the city of Chandrapore presents nothing extraordinary.
normal, não? duas páginas antes, eu tinha traduzido o trecho tranquila, numa boa, algo mais ou menos como:
Exceto pelas Cavernas de Marabar - e ficam a mais de trinta quilômetros de distância - a cidade de Chandrapore não apresenta nada de extraordinário. 
ok, não? nãããão! não, não e não. pois eagleton vem e explica que as partes dessa frase inicial são quase metrificadas no ritmo e equilíbrio, como que uma quadra de trímetros, versos de três tônicas:
Except for the Marabar Caves
And they are twenty miles off
The city of Chandrapore
Presents nothing extraordinary.
imagina se o que eu tinha feito antes passaria remotamente o mais leve efeito de métrica e distribuição tônica!
Exceto pelas Cavernas de Marabar
E ficam a mais de trinta quilômetros de distância
A cidade de Chandrapore
Não apresenta nada de extraordinário. 
sem chance. vou ter de ver o que fazer. mas adorei a lição (e aqui a aluninha esforçada).


as cavernas de marabar, aqui em cena do filme de david lean


21 de março de 2014

how to read literature


começo a traduzir how to read literature, de terry eagleton, que dá para folhear aqui.


talvez surjam questões legais, interessantes ou divertidas, que então compartilharei neste blog.